Este artigo foi originalmente publicado pelo Oficina Antivigilancia, um projecto de codificação Direitos em 01 de março de 2016.
A cidade do futuro que vejo em vídeos promocionais de sistemas massivos de vigilância e controle de multidões parece imersa em um estado permanente de normalidade. É uma cidade sem trânsito e sem protestos, sem desastres visíveis, sem manifestações espontâneas, sem surpresas. Os eventos espontâneos, como erros de sistema, são eliminados antes que ocorram. O movimento, a análise, as decisões passam por uma sala de controle que se assemelha a uma nave espacial, onde os seus técnicos trabalham em tempo real, vendo a todos nós sem que possamos vê-los. Os cidadãos não possuem acesso a eles, muito pelo contrário. São sistemas fechados, difíceis de serem fiscalizados. Onde as ações são ditadas por um sistema projetado em outro local e que procura não parecer político. A tecnologia é política.
Cidades onde tudo é controlado por tecnologias invisíveis, quase imperceptíveis no cotidiano. As câmeras de vigilância visíveis nas esquinas são substituídas por sistemas integrados de monitoramento constante integrados à paisagem. Cidades com sensores que coletam nossos dados durante todo o dia, onde cada movimento é registrado e armazenado e as decisões são automatizadas e desumanizadas. Monetizadas para otimizar o consumo, prever o comportamento. Controlar populações. E quem se beneficia de não saber quem e o porquê se tomam tais decisões é o mesmo conglomerado que aposta em tal visão. Umas poucas empresas desenvolvendo software, hardware e habilidades concentradas em apenas alguns países. Um mercado de oito bilhões, com expectativa de crescimento superior a dez vezes até 2020. Sustentados pelos já escassos recursos públicos de países como os nossos.
Embora os discursos continuem a alimentar o imaginário, descrevendo a câmera que detecta os batedores de carteiras, trata-se de algo radicalmente diferente. São matrizes que combinam uma grande quantidade de dados em tempo real. A visão das cidades do futuro, promovida por um grupo reduzido de conglomerados tecnológicos, é aquela onde a qualidade de vida é diretamente proporcional à previsibilidade e homogeneidade de seus habitantes e se choca com a luta em favor da diversidade dos povos. Pela diversidade de comportamento. Para atingi-la, sacrifica-se muito mais do que a privacidade, e a segurança é entregue àqueles que se encontram na sala fechada de controle. Trata-se de sacrificar a forma mais próxima da democracia que temos, o nosso direito de protestar de forma livre e anônima nas ruas.
Os sistemas de vigilância locais estão se expandindo rapidamente na América Latina. Muito mais rapidamente do que os marcos regulamentares adequados de proteção da privacidade e de dados pessoais. Sem mecanismos democráticos, consultas comunitárias ou locais para determinar a sua necessidade e adequação. São sistemas sofisticados e efêmeros, que necessitam de atualização e manutenção onerosas e geram benefícios vagos. Em Tegucigalpa (Honduras), por exemplo, a cidade não conseguiu dar seguimento ao sistema de vigilânciapor falta de orçamento para a manutenção das câmeras.
Os contratos assinados deixam mais de uma instituição pública de mãos atadas, hipotecando o futuro do orçamento municipal, e com um maquinário coordenado de comercialização e dados sem um apoio sólido que comprove sua eficácia.
As autoridades garantem que as câmeras, a modelagem de cenários e a vigilância massiva vão eliminar o problema da segurança, privilegiando estas em detrimento de outras políticas públicas destinadas a combater a pobreza extrema e a desigualdade de acesso aos serviços básicos, bem como a recuperação do espaço público. Os estudos que atestam a eficácia da vigilância como uma medida para a redução da criminalidade são incompletos, não separam a dimensão tecnológica de outros fatores locais internos ou externos e não podem ser aplicados a contextos distintos.
As cidades do futuro promovidas pelos conglomerados que se beneficiam delas permitem antecipar eventos, decidir preventivamente como controlar multidões, bloquear protestos e prever manifestações em prol de mais e melhores direitos. Discriminar com base em um algoritmo. Excluir com base em padrões de comportamento.
Queremos um futuro sem vigilância? Um futuro onde a diversidade, e não a uniformidade de comportamento, seja a regra? Comecemos por erradicar a cultura de vigilantes (agora invisíveis) do bairro e da cidade. Comecemos a participar em todos os espaços abertos e, caso eles não existam, vamos criá-los. Antes que o último bastião de democracia seja nada mais do que uma memória apagada por alguém atrás de um monitor. Entre os passos que podemos seguir encontram-se três que enumero:
Impedir a chegada da vigilância
Se a vigilância massiva é um tema ainda explorado como sendo uma medida de segurança, é importante organizar a comunidade contra ela, perguntando, em primeiro lugar, quais bens ou serviços municipais serão sacrificados para fornecê-la, e o impacto que essa priorização terá sobre a vida do bairro e da comunidade. Além disso, é importante perguntar sobre a sustentabilidade e a viabilidade desses projetos a longo prazo, as condições sob as quais o governo municipal os está adquirindo e os prazos. É importante quantificar o que é sacrificado ao se investir em vigilância. Por exemplo, indicando a quantidade de programas de atendimento a crianças e jovens sob risco que poderiam ser abertos pelo mesmo custo, oferecendo soluções completas e de longo prazo. Uma vez instalado um sistema de vigilância massivo, a privacidade e a intimidade ficam restritas àqueles que podem pagar por elas.
Questionar a vigilância massiva instalada e seus custos de manutenção e atualização
As decisões destinadas a melhorar a segurança e a qualidade de vida dos bairros e cidades devem ser participativas, e deve ser comparado o benefício da instalação de mecanismos de vigilância massiva e contínua do espaço público em relação a alternativas semelhantes, de cunho social. E isso porque a vigilância com uso de tecnologia é cara e, para cada câmera instalada, há não somente custos fixos associados de manutenção e atualização, mas também o sacrifício de gastos públicos com programas sociais. Além disso, a maioria dos fornecedores de tecnologia são estrangeiros. As tecnologias, na sua maioria fechadas e executadas em software privado, tornam impossível uma fiscalização eficaz por parte dos cidadãos. Os contratos com fornecedores de câmeras e serviços geralmente são milionários e criam obrigações que vão além do mandato do governo que os assinou, sem considerar as realidades do município.
Entrar em contato com outras cidades e grupos rebeldes
Para nos livrarmos da vigilância e de outras formas repressivas e autoritárias que ela induz, devemos ativar imediatamente todos os mecanismos que a lei nos permite para fiscalizar o funcionamento dos sistemas de vigilância massiva em nossas cidades. E devemos fazê-lo de forma coletiva, em coordenação com outras cidades afetadas pelo problema. Assim como existe uma rede de Cidades Inteligentes, devemos formar nossa própria rede de Cidades Rebeldes, onde se rejeita a vigilância e se afirma que a democracia participativa e delimitada pelo respeito aos direitos humanos e à diversidade — com foco em soluções coletivas — é o caminho para as cidades seguras. E não as câmeras.
Poderemos, então, ativar simultaneamente mecanismos de colaboração para impedir a sua expansão. Solicitar acesso a informações públicas que detalham os custos. Exigir análises dos resultados. Empreender ações legais rigorosas contra possíveis usos ilegais das mesmas para fins de políticas discriminatórias. Exigir das autoridades de proteção de dados, ou das autoridades de direitos humanos onde aquelas não existam, que sejam realizados estudos de viabilidade para avaliação do impacto sobre os direitos individuais antes de instalá-las. A democracia começa e termina dessa forma. Exercendo-a.
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